A PESTE


22.06.2020

Albert Camus (1913-1960), escritor e filósofo francês, Prêmio Nobel de Literatura, foi um dos intelectuais mais importantes do século XX. Em 1942, ao mesmo tempo em que lutava na resistência à ocupação nazista da França, começou a escrever A PESTE, publicada em 1947. O enredo é a descrição da peste bubônica na cidade de Oran, na Argélia francesa dos anos 1940.

Italo Calvino afirma que 'um clássico' é um livro que nunca terminou de dizer aquilo que tinha a dizer. As coincidências com a atual pandemia e as reflexões de Camus sobre a condição humana e a resistência ao totalitarismo político têm ainda muito a dizer, especialmente em nosso Brasil acometido pela peste moral e pela Covid-19.

Camus lutou contra os totalitarismos nazista e stalinista. E sua filosofia pode ser resumida como a negação dos ídolos da metafísica, incluíndo aí as modernas ideologias, a afirmação do ser humano como valor supremo, e a revolta contra o absurdo da existência. O absurdo nasce da confrontação entre o apelo de encontrar um sentido para a vida e o silêncio do mundo, de nossa mente racional em um mundo irracional. Não eram as teorias que interessavam a Camus, mas a realidade da existência humana. A dignidade humana está acima de qualquer ideologia.

Como na atual pandemia, a peste em Oran é inicialmente negada pelas autoridades e somente admitida quando a morte, antes velada, é revelada em toda sua crueldade e absurdo pelas sepulturas comuns. Políticos e empresários desonestos procuram tirar proveito da desgraça coletiva. Por outro lado, homens honestos, especialmente o médico Rieux, se revoltam contra o absurdo da peste e da injustiça, e fazem o que lhes cabe fazer em solidariedade aos doentes, arriscando as próprias vidas. Ou seja, a Oran empesteada de Camus em tudo se assemelha ao empesteado Brasil de nossos dias.

A obra pode ser vista como duas alegorias ou metáforas: uma externa, histórica, relativa aos horrores da II Guerra Mundial e ao totalitarismo em geral; outra interna, ético-existencial, referente ao absurdo da condição humana e a resistência a este absurdo.

Um dia os ratos invadem a pequena Oran trazendo a peste, da mesma forma que os soldados nazistas invadem os países europeus trazendo a desgraça. De forma semelhante, nos dias atuais, nossos dirigentes invadem os três poderes empesteando moralmente a República e a vida da população. A única resposta honesta ao absurdo do totalitarismo e à falta de ética na política é a revolta e resistência ao mal. Cabe a cada um se revoltar através da ação contra o absurdo da pandemia da Covid-19 e do pandemônio da política nacional.

O tratamento possível ao absurdo da condição humana é a resistência por meio da compaixão e amor às vítimas. Não o amor idealista e abstrato dos heróis e dos santos, mas o amor pelo ser humano concreto, materializado na simples realização do dever. O médico Rieux (definido por Camus como santo laico, sem Deus) afirma que, durante a peste, os homens honestos têm certeza apenas do sofrimento e do amor. E no final da peste, apesar de ter perdido milhares de pacientes, vários amigos, a esposa e ter presenciado por dez meses o absurdo do sofrimento de inocentes, sente-se realizado por ter feito sua obrigação. E conclui que apesar da falta de sentido da existência, vale a pena viver. A compaixão e o amor criam o sentido. Sua gran-deza consiste na sua decisão de ser mais forte que a condição humana, de se revoltar, de não ser indiferente. Se faz parte da condição humana estar neste mundo, devemos estar de forma ativa, desafiando nosso destino.

Em tempos normais, o hábito garante nossa segurança e nos poupa da angústia de pensar, nos condenando a ser sempre os mesmos. A crise determina a suspensão dos hábitos e a destruição das certezas. Só nos resta o pensamento, que nos leva a ver que nosso destino individual está atrelado ao destino coletivo e nos força a criar novos sentidos para a vida. Mas quando a ordem retorna, as pessoas voltam a ser quem eram.

Camus finaliza a obra advertindo que na crise podemos ver com clareza o que realmente importa, mas ao retornar a normalidade, esquecemos o que antes era evidente. E nossa tranquila vida poderá ser assolada por nova peste, criada por nós mesmos. A peste está em nós.

Dr. Sebastião Gusmão

Professor Titular de Neurocirurgia da Faculdade de Medicina da UFMG

Tel: (38) 3531-4016

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