Filhos de um aborto
22.10.2018
A democracia brasileira foi um aborto. A consciência de nação foi um sentimento prematuro e tardio, que só aportou por aqui no acaso acovardado da vinda da família imperial portuguesa fugindo do exército flagelado e em frangalhos de Napoleão Bonaparte em 1808. Desde então, o Brasil, quase nação, viveu ao sabor dos ventos, sem caminho próprio, sem a autodeterminação de seu povo. 1822 foi uma versão heroica da pueril sacada mais que nunca atual do ‘vai que cola’. E colou, o Império decolou até encontrar um marechal em delírio febril que negou seus ideais fazendo a independência do Brasil. É cômico e trágico, bem ao modo de nossa gente.
Tudo na democracia brasileira foi fruto do acaso, das ideias de apaniguados, sempre visando o benefício próprio. Vargas em 1930, 1935 e 1954 foi a encarnação da tragédia brasileira, um encenação do tosco ‘ganhar, mas não levar’. Assim foi, assim tem sido, assim é!
Em 1930 a marcha cívica trazida pelo minuano não durou dois anos, e a cizânia justificou a truculência de um governo de poucas leis e sem eleições. Depois de 1932 e o auge da divisão ideológica da federação, a Intentona Comunista apenas serviu de pretexto para o acirramento dos ânimos e a implantação do intransigente Estado Novo. A ditadura ganhou novo fôlego, quando a perseguição se fez carne. Em 1954, segundo governo Vargas, já com a volta do poder ao povo por meio do voto e a consciência de nação ganhando corpo, encenou-se em sangue o que se passava nos escaninhos democráticos do poder: o suicídio das leis e direitos trabalhista. Com Vargas morto, 1961 ou 1964 já teria ‘jurisprudência’ e cenário perfeitos para nova encenação. E assim foi. E assim tudo se passou e passa nessa devassada democracia tupiniquim, mistura de interesses e interessados.
Pela fresta do tempo, a compra dos partidos e deputados federais pelo IBAD na década de 1960 deu a senha do modus operandi do poder intervensionista norteamericano nesta terra tão gentil. Era o começo do Golpe de 1964. No último século, o Brasil teve 5 décadas pisadas pela ditadura – 1930, 1940, 1960, 1970 e 1980 - enquanto a democracia era desfigurada pelos cantos da nação. Um atestado para uma nação desprovida de solidez, clareza de ideias, de homens, ideais e história.
A nossa democracia é um aborto. As ditaduras não, são gestadas, em óvulo fecundado pelos Estados Unidos da América. Esse óvulo produziu um filho gordo, que fez desde 1964 - com surpreendente êxito - o aniquilamento do nacionalismo brasileiro, com nacionalistas de direita e esquerda se matando simultaneamente. Um feito, penso até que um crime perfeito.
Nós nunca fomos capazes de perceber os processos em que estamos inseridos, até hoje. O que dói e constatar que sempre lutamos contra nós mesmos, contra nossos direitos, contra nos interesses. Nossa subserviência é tão arraigada que nos passa despercebida. Estamos sempre indo em frente, mesmo constrangidos, batendo as panelas, para o estrangeiro que canta e dança diante da torpe sinfonia sobre nossa pobre consciência cívica. Triste pátria mãe servil. Enquanto isso, enquanto acreditamos lavar a política nacional, o Brasil vai pelo ralo.
Petrônio Souza Gonçalves
Petrônio Souza Gonçalves é jornalista e escritor