DEMOCRACIA EM CRISE


14.12.2021

O relatório do Instituto Internacional para a Democracia e Assistência Eleitoral (International Institute for Democracy and Electoral Assistance), com sede em Estocolmo, publicado no dia 22 de novembro, demonstra a erosão da democracia e o avanço do autoritarismo em vários países. Segundo o Instituto, o Brasil registrou o "maior declínio democrático" entre 150 países analisados. A Instituição alerta que 70% da população mundial vive em países onde há retrocesso democrático e que o número de países que se dirigem para o autoritarismo superou o número daqueles em fase de democratização.

Étienne de la Boétie escreveu, em 1548, o Discurso Sobre a Servidão Voluntária. Passados quase cinco séculos, nada superou esse discurso em favor da liberdade e contra os tiranos. Segundo Boétie, o poder do tirano origina-se, sobretudo, da magia que seu nome é capaz de cativar e se mantém em razão de uma suposta segurança. O hábito de pertencer ao rebanho do tirano parece mais seguro do que ser responsável pelo próprio destino, e nos poupa da angústia de pensar, nos condenando a ser sempre os mesmos. Somos seduzidos pela servidão e os tiranos são grandes porque nos colocamos de joelhos. Uma rede piramidal de súditos, com o tirano no topo, controla a massa ignorante da base da pirâmide por meio das políticas de “pão e circo”, e dos discursos religiosos que envolvem o tirano em um manto de devoção. Isso foi dito há quase cinco séculos, e parece que Boétie está descrevendo nosso atual sistema politico de coalisão (ou de corrupção).

Nascemos com as possibilidades do conhecimento e da liberdade. E a história da Humanidade é a história da luta contínua e árdua para aquisição desses dons naturais. .A liberdade, e a dignidade dela decorrente, é a essência do ser humano, o que o torna, segundo o filósofo grego Protágoras, a medida de todas as coisas. A vida em sociedade só pode ser digna em sistema politico compatível com nossa natureza livre, ou seja, a democracia. Totalitarismo significa perda da liberdade e, consequentemente, da dignidade humana. A liberdade envolve a capacidade de pensar criticamente e fazer escolhas com base no conhecimento e na responsabilidade. A ignorância, que gera o medo, o preconceito e as ilusões falsamente reconfortantes nos aprisiona. A aquisição de conhecimento é libertadora e nos possibilita a transcendência (ultrapassar os limites) sobre o mundo e sobre nós mesmos, o que é proporcionado por nossa capacidade de romper os limites, superar e violar os interditos, de ir além daquilo que é dado. O desejo de conhecimento é nosso “pecado original”. Afinal, sem o conhecimento, a cultura, o homem é apenas um pobre animal.

As atuais redes de computadores criaram a sociedade da informação (Era da Informação). O excesso infernal de informações, contaminado pelos vírus das fake news (falsa informação), criam o fake knowledge (falso conhecimento) e dão origem à pandemia da desinformação. A dinâmica dos algoritmos das redes sociais coloca em contato apenas aqueles se afinam entre si, formando seitas de servos voluntários de um só pensamento, de uma só verdade, ou seja, constituindo-se em grupos de falso conhecimento. O inimigo do conhecimento não é a ignorância e sim a ilusão do conhecimento.

Como afirma Umberto Eco, as redes sociais deram direito à palavra a uma legião de imbecis. Por falta de tempo e de reflexão, nos desenfornamos sem saber. Como consequência, a verdade possível (relativa e escudada na razão e evidencias) está perdendo importância no debate politico e a opinião pública está sendo moldada mais pelos apelos emocionais ou pelas convicções de cada um do que pela consistência dos fatos. Nunca a informação foi tão acessível e ao mesmo tempo tão duvidosa. A difusão infinita de conteúdos manipulados, associada à falta de reflexão, leva à disseminação do obscurantismo, colocando em risco a democracia. A desinformação contamina o rebanho de analfabetos funcionais, privados da imunidade propiciada pelo conhecimento. O desafio é selecionar a informação e refletir sobre seu significado.

O atual debate político em nosso país está contaminado pelo ódio e pela polarização das ideologias extremas, liderado, em grande parte, por políticos personalistas, autoritários, sem conteúdo programático: verdadeiros anões que querem chegar ao topo da pirâmide presidencial. A principal arma do totalitarismo é a propaganda, que elege o inimigo responsável pela desgraça atual e oferece um paraíso imaginário. E, quando ao desastre socioeconômico se associa o analfabetismo funcional, torna-se fácil aceitar paraísos terrestres e extraterrestres. Nossas opções parecem se restringir, quase inteiramente, aos velhos políticos banhados de lama e aos pretensos apolíticos mensageiros de pós-verdades. E tudo indica que perpetuaremos a tragédia de eleger nossos próprios algozes.

O enorme escândalo de corrupção, a crise moral e a crise financeira que vivemos levaram à perda de confiança dos brasileiros nos políticos e consequente ameaça à democracia. A convicção dos cidadãos de que todos os políticos são corruptos os tornam mais propensos a votar em um outsider (que se autodenomina não político), populista e autoritário, com discurso demagogo anticorrupção.

Antigamente as democracias sucumbiam com tanques nas ruas e presidentes depostos ou assassinados. Hoje tudo ocorre de forma mais sutil e dentro da legalidade. A essência do sistema é eliminada sem que os procedimentos legais sejam desrespeitados. As democracias morrem hoje pelas mãos de presidentes autoritários, eleitos pela população e que as destroem usando as instituições democráticas. Na América Latina não há mais golpes, mas a democracia continua morrendo por meio de líderes eleitos.

Entre os extremos, à direita ou à esquerda, a história mostra que a verdade está na democracia, na liberdade. A democracia não garante o paraíso na terra, mas impede que o inferno se instale. Ela é o único sistema politico que, apesar de suas falhas estruturais, torna possível a liberdade dentro de nossa limitada condição humana. Mas essa liberdade é conquistada, exige conhecimento. Liberdade e conhecimento são tarefas sem fim.

Como admoesta Boétie, tanto o conhecimento e a liberdade quanto a servidão e a ignorância fazem parte de nossa natureza. Que a liberdade, possibilitada pela democracia, abra as asas sobre nós.

Dr. Sebastião Gusmão

Professor Titular de Neurocirurgia da Faculdade de Medicina da UFMG

Tel: (38) 3531-4016

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