A Consolação da Filosofia
15.10.2021
A Consolação da Filosofia foi escrita na prisão, por Boécio (filósofo, poeta, estadista e filósofo romano), no século VI (imediatamente após a queda do Império Romano), enquanto era torturado e esperava a execução da pena de morte, ocorrida no ano de 524. É um dos grandes clássicos da filosofia. Boécio, que perdeu tudo - era nobre, senador e espécie de primeiro-ministro de Teodorico, rei dos ostrogodos-, convenceu-se de que não perdera nada que valesse a pena lamentar. E nos convida, em um verdadeiro hino de libertação, a fazer da consciência trágica o início de uma transcendência, para sairmos da “caverna de Platão” (ignorância) pelo caminho do conhecimento, da filosofia.
A filosofia é um campo do conhecimento, da produção do saber, como a religião, a arte e a ciência. Na religião a interação é por meio da fé; na arte é por meio da estética; na ciência por meio de métodos; e o próprio da filosofia é construir conceitos (formulação de ideia por meio de palavras) para interpretar a realidade. Ela apresenta três dimensões: o conhecimento do que é, uma teoria que define a estrutura ou a essência mais íntima da realidade (ontologia); a procura da justiça (ética); e a busca do bem viver (sabedoria). Com estas dimensões, procura-se responder às três perguntas: Que posso saber? Que devo fazer? Como viver? Tentar responder de forma racional a estas perguntas é fazer filosofia.
A consciência da finitude e a brevidade da vida geram a questão de saber o que fazer do tempo limitado que nos cabe. Para isso precisamos primeiro conhecer o mundo (ontologia) onde ocorre nossa existência. A teoria sobre a essência do mundo vai determinar o melhor modo de conduzir a vida (a ética e a sabedoria), com implicações práticas nos planos moral, jurídico e político. Como viver é quase conviver, precisamos saber como viver com os outros. Essa é a parte mais prática da filosofia, a ética. Mas qual a finalidade de conhecer o mundo e procurar conviver bem com os demais? Esse é o campo da sabedoria. E ser sábio significa viver sabiamente, feliz e livre, na medida do possível. A sabedoria torna a alma grande; e “tudo vale a pena quando a alma não é pequena” (Fernando Pessoa).
A filosofia, como a religião, nasceu do medo da morte. O religião promete nos livrar da morte e a filosofia se propõe a nos livrar do medo da morte. Este medo nos impede de viver bem, não somente porque gera a angústia da finitude, mas também porque a irreversibilidade do curso da existência (o tempo que não volta), que é uma forma de morte no interior da própria vida, nos arrasta para o passado, gerando nostalgia e culpa, ou nos joga para as esperanças de um futuro inexistente. Passamos grande parte da vida entre lembranças e projetos, entre nostalgia e esperança. Como afirma Sêneca, “enquanto se espera viver, a vida passa”. Se o ontem não mais existe e o amanhã é apenas uma possibilidade, a sabedoria consiste em preencher a vida com o tempo presente, sem sofrer ou angustiar-se nos inexistentes tempos do passado e do futuro.
Sentimos que fazemos parte de um universo misterioso, e é de nossa natureza a vontade de desfazer os mistérios, procurar o conhecimento. O estudo da filosofia, além de possibilitar o conhecimento de si mesmo e do mundo, pode nos ajudar a viver melhor e mais livremente, a vencer os medos que paralisam a vida. A questão da vida boa para o ser humano é a questão maior da filosofia. Assim, Epicuro afirma que “a filosofia é uma atividade que, por discursos e raciocínios, nos proporciona a vida feliz”, e que seria como uma “medicina da alma”, para nos livrar dos medos e saber usufruir os prazeres com sabedoria.
Todo ser humano é um filósofo, é um animal filosofante. Como somos seres sensíveis e racionais sempre procuramos articular a existência com a razão para pesquisar o sentido das coisas e usar valores para fundamentar nossas decisões. Isso é filosofar e todos temos uma filosofia de vida, um conjunto de crenças e princípios operacionais que orientam nossas ações, estejamos ou não conscientes deles. É importante conhecer o pensamento dos grandes filósofos (acumulado em XXV séculos), mas cada um deve aprender a filosofar, a refletir criticamente por si mesmo, pois ninguém pode pensar ou viver em nosso lugar. Filosofar é pensar por contra própria: pensar melhor, com clareza, para viver melhor. Como afirma Kant, não se aprende filosofia, mas a filosofar: interrogando-se sobre seu próprio pensamento, sobre o pensamento dos outros, sobre o mundo. E o ponto de partida é a capacidade de se surpreender e fazer perguntas, comum às crianças e aos filósofos. A filosofia é uma atividade e não uma teoria: “sua função é desatar os nós de nosso pensamento” (Wittgenstein). Podemos viver sem filosofar (na tolice, no obscurantismo, no fanatismo), mas não podemos, sem filosofar, pensar nossa vida e questionar nosso pensamento, já que isso é a própria filosofia. “Uma vida não pensada não vale a pena ser vivida” (Sócrates). Continua válido o conselho de Epicuro: “Que ninguém hesite em se dedicar à filosofia enquanto jovem, nem se canse de fazê-lo depois de velho”, já que nunca é cedo demais nem tarde demais para ser feliz.
A filosofia é uma prática discursiva que tem a vida por objeto, a razão por meio e a felicidade por fim (Comte-Sponville). A meta da filosofia é a sabedoria (philo, amor; sophia, sabedoria; amor pela sabedoria). Não é por acaso que Tales de Mileto, o primeiro dos sete sábios da Grécia, seja também o primeiro filósofo. A sabedoria se manifesta por certa felicidade. Portanto, a meta da filosofia é a felicidade. Quando temos tudo para ser e não somos felizes, o que falta é sabedoria. E os grandes sábios do passado concordam que só há sabedoria no amor e pelo amor. A verdadeira sabedoria consiste em caminhar rumo à transcendência, lamentando menos o passado, esperando menos do futuro e amando mais no presente. E a forma de tornar este presente num bem precioso é viver os prazeres simples das relações com as pessoas e o meio no qual vivemos. Uma vida boa é, em grande parte, uma vida de boas relações pessoais.
Nascemos com as possibilidades do conhecimento e da liberdade. E a história da humanidade é a história da luta contínua e árdua para aquisição destes dons naturais. O conhecimento das coisas e dos fenômenos da realidade exterior ao pensamento é objeto da ciência. O verdadeiro objeto da filosofia é o conhecimento em si (conhecimento do conhecimento). A ciência ocupa-se das questões que podem ser decididas por observação ou experimentação. A filosofia dedica-se às questões que podem ser resolvidas pela investigação racional, mas não pela experimentação. Ela se propõe a pensar nossos pensamentos e ações.
O conhecimento ocorre por meio do pensamento, que é determinado pelos sentidos, pelo intelecto, pela linguagem e pela vivência social. Conhecemos as coisas primariamente por meio dos sentidos, que são limitados para apreender a realidade e podem nos enganar. Como o conhecimento não pode exceder os limites da experiência, é impossível conhecer o suprassensível, o que nosso aparelho corporal não pode apreender. O percebido pelos sentidos é ordenado do modo próprio determinado por nosso intelecto, que não é competente para compreender toda a realidade. Pensa-se com a linguagem, com palavras que representam as coisas, mas entre ambas existe um abismo intransponível. Acrescenta-se ainda que a linguagem é um conjunto limitado de signos (palavras) para representar a complexidade das coisa e dos fenômenos em constante transformação. A experiência social (cultura) vai também moldar e limitar nosso pensamento. O conhecimento ocorre quando representamos em nossa mente o que mais ou menos existe na realidade. Como a representação é mais ou menos (devido às limitações citadas), não há conhecimento absoluto (verdade). O conhecimento é apenas uma interpretação, uma atribuição de sentido e valores. E uma interpretação pode ser substituída por outra, até o infinito: “não há fatos, só interpretações” (Nietzsche). O que nosso aparelho cerebral consegue captar é o que podemos apreender. Muito mais pode existir para além do que podemos conhecer, e para o qual somos naturalmente ignorantes. Mas o inimigo do conhecimento não é a ignorância e sim a ilusão do conhecimento.
Precisamos viver, mas não conhecemos a verdade da vida. Assim, nossas opções são a fé e a busca da transcendência por meio do conhecimento possível.
Humanos, diferentemente dos animais (que vivem apenas no mundo real), vivem no mundo real e no mundo da ficção (o mundo das histórias que inventamos). Neste segundo mundo podemos prescindir da lógica e das evidências e criar histórias, que transformamos em artigos de fé. Vivemos da fé, pois o conhecimento científico e as “verdades” que orientam nossas vidas são uma questão de fé. A fé cria ilusões. Mas nosso cérebro evoluiu para integrar a realidade e a ilusão, para viver no mundo real e no mundo da ficção, tornando possível suportar a existência. A arte, a filosofia, a religião e a ciência (a cultura) existem para que a realidade não nos esmague. Somos movidos não pela verdade, mas pela fé, pela ilusão. Necessitamos da ilusão e devemos apostar nas ilusões e desejos que intensificam nossa vontade de potência, de viver.
Embora a verdade não exista ou não nos é acessível, nosso destino é a busca pelo conhecimento o mais preciso possível. O conhecimento nos possibilita a transcendência (ultrapassar os limites) sobre o mundo e sobre nós mesmos, que é dada por nossa capacidade de romper os limites, superar e violar os interditos, de ir além daquilo que é dado. Nossa grandeza consiste na decisão de ser mais forte que a condição humana, de ir além do que foi estabelecido, desafiando nosso destino. Afinal, “há mais coisas entre o céu e a terra do que sonha nossa vã filosofia” (Shakespeare). E a única opção para saber de nossas possibilidades “entre o céu e a terra” é continuar a expandir os limites de nosso pensamento, conhecendo, transcendendo.
Nossa vontade de transcendência, nossa fé na existência, permitiu a caminhada das estepes africanas até o espaço sideral, na saga de conquistar o que existe entre o céu e a terra e que nossa pouca filosofia ainda não conhece. É a vontade de superar a nós mesmos, de ir além de nossa humanidade, de afirmar a vida, de transcender. Se faz parte da condição humana estar neste mundo, devemos estar de forma ativa, desafiando nosso destino. Somos nossa própria luz, um projeto nunca acabado, tendo sempre que nos construir, de ser o escultor de nós mesmos. Enfim, é o desejo de sair da caverna de nossas limitações por meio da compreensão da realidade, ou seja, da filosofia. Somente o pensamento filosófico tem ousadia para se lançar nesta jornada rumo à transcendência, aos limites da linguagem e da existência. O desejo de conhecimento é nosso “pecado original”.
Boécio testemunhou a queda do mundo clássico grego-romano, o fim de sua civilização, em uma Roma dominada pelos bárbaros. E passou seu último ano de vida sendo torturado em uma prisão, à espera da execução da pena de morte. Apesar da situação de extrema adversidade, a filosofia o consolou e lhe deu forças para nos transmitir um verdadeiro hino de fé na vida e de transcendência sobre nós mesmos, resumido nas palavras: “Atribuis grande valor a uma felicidade que deves perder. Nada que o dia vê é definitivo. Por que, mortais, buscais fora de vós mesmos o que se encontra dentro? O sábio só quer a sabedoria e ao se bater com a adversidade, aumenta sua sabedoria. Bem aventurado será o gênero humano se seu coração obedecer ao amor, o mesmo a quem o próprio céu estrelado obedece. Elevar-se acima da terra é merecer as estrelas.”
A filosofia é uma forma de pensar para tentar compreender a realidade, possibilitar uma vida boa e criar um sentido para a existência. Talvez o sentido seja a própria existência com sabedoria, tendo a filosofia como guia e consolação.
Dr. Sebastião Gusmão
Professor Titular de Neurocirurgia da Faculdade de Medicina da UFMG
Tel: (38) 3531-4016