Angústia em tempos de pandemia


16.08.2021

A angústia caracteriza o existir, a condição humana. É causada pelo fato de sermos lançados no mundo, mas sem saber porque e para quê. Nós nos angustiamos pelo simples fato de estar no mundo, de existir. Esta turbulência em nosso íntimo, essa dor psíquica profunda, é denominada de angústia existencial.

Não existe qualquer predeterminação com relação à existência humana, donde decorre nossa liberdade. Mas essa liberdade, que nos diferencia dos animais e determina nossa dignidade, nos leva à angústia. Estamos condenados a ser livres, a ter opções de escolha, a ser senhores de nosso destino em uma existência trágica, permeada pela dor, pela solidão, em um universo silencioso, e pela morte. E as aspirações a uma liberdade total da vida são frustradas pelas condições reais da existência possível, o que nos angustia ainda mais.

Nos angustia a estranheza de ser, e pior, a estranheza de parar de ser. O ser nos angustia, o todo nos angustia, o nada nos angustia. Nos angustia a ausência de respostas para as perguntas fundamentais: Quem sou? De onde venho? Para onde vou? Qual o sentido da vida? Fazer estas perguntas é fazer filosofia. E as perguntas angustiam, a filosofia angustia, pois não nos oferece o conforto da verdade.

A filosofia contemporânea passou a interpretar a essência do mundo como um vasto e caótico campo de forças ou de pulsões sem sentido e sem razão. E colocou em questão a competência da razão para nos levar à verdade, passando a advogar um equilíbrio entre razão e instinto para compreender a natureza humana. A aposta nos dois mundos platônico-cristão foi substituída pela esperança na ciência. Mas essa, além de não nos dar resposta para as questões fundamentais, produz mais angústia por nos colocar em um universo relativo, incerto, regido por forças caóticas, sujeitas ao acaso e à necessidade. E o mais grave, cria um mundo tecnológico, que ameaça a própria essência de nossa humanidade e nosso futuro.

Hoje vivemos a pós-modernidade, um mundo com mudanças rápidas e imprevisíveis, no qual emergem o individualismo, a efemeridade das relações, a sociedade de consumo, a fluidez. Todas as grandes narrativas, visões de mundo (cristianismo, Iluminismo, marxismo, idealismo), entraram em crise e aumentaram as incertezas em relação ao futuro. A mudança passou a ser a única coisa permanente e a incerteza a única certeza. E tudo torna-se ainda mais fluido na realidade virtual da Internet, onde preferimos a imagem ao objeto, a cópia ao original, o simulacro ao real. A felicidade passou a significar estar conectado e consumindo. A fluidez de Heráclito foi intensificada no mundo líquido (o líquido muda constantemente de forma) de Zygmunt Bauman. Não podemos banhar duas vezes no mesmo rio, como afirmou Heráclito, como estamos imersos na própria fluidez do turbulento rio da existência. E isso nos angustia, pois amamos o duradouro, o sólido.

O mundo líquido de ondas aceleradas inunda tudo e determina as atuais crises moral, política e sanitária. E tudo isso parece ainda mais intensificado em nosso país com uma classe política corrupta e incompetente, uma escandalosa distribuição de renda e uma pandemia mal combatida. A crise moral nos deixa sem rumo, sem valores, sem certezas, simples consumidores de bens e informações na virtualidade das redes sociais; parafraseando Descartes: estou conectado e consumo, logo existo. A crise política, com a atual polarização entre extremos, gera ódios e crise social. E as estatísticas diárias de centenas de existências interrompidas nos confronta com a finitude, o nada, a morte.

Além de nos faltar a verdade, o excesso infernal de informações, contaminado pelo vírus da pós-verdade e seu derivado, as fake news (falsa informação), criam o fake knowledge (falso conhecimento) e dão origem à pandemia da desinformação. Nunca o conhecimento foi tão acessível e ao mesmo tempo tão duvidoso. Por falta de tempo e de reflexão, nos desinformamos. E tudo isso aumenta nossa angústia.

Atualmente nossa vida é pautada pela pandemia. Ela exige isolamento social. Mas somos seres sociais, gregários, onde viver é quase igual a conviver. O isolamento, a falta de convivência, nos angustia.

Na obra A Peste, Camus afirma que, durante a peste, os homens honestos têm certeza apenas do sofrimento e do amor, e que a compaixão e o amor dão o sentido da vida. Mas, entre nós, a certeza é a polarização política, a má gestão da coisa pública, a falsa ciência, o ódio nas redes sociais e as ideologias extremas que ameaçam a liberdade. A ciência moderna mostrou sua competência em controlar pandemias, pestes. Mas, em nosso país, é uma falsa ciência que predomina no combate ao vírus. E, consequentemente, a doença e a morte persistem e a angústia se intensifica. O problema não é o vírus, somos nós mesmos. A peste está em nós. E isso nos angustia.

A angústia pode nos paralisar, nos fazendo sentir num abismo profundo. E como aliviar, superar, nossa angustia? A transcendência e a fé seriam as respostas.

Possuímos a alternativa da transcendência (ultrapassar os limites) sobre o mundo e sobre nós mesmos, pois temos capacidade de romper os limites, superar e violar os interditos, de ir além daquilo que é dado, de transcender. A grandeza, a vida autêntica, consiste na decisão de ser mais forte que a condição humana, de se revoltar, de não ser indiferente, de ir além do que foi estabelecido, desafiando nosso destino. Afinal, “há mais coisas entre o céu e a terra do que sonha nossa vã filosofia” (Shakespeare). E a única opção para saber de nossas possibilidades “entre o céu e a terra” é continuar a expandir os limites de nosso pensamento, transcendendo, sonhando.

Humanos, diferentemente dos animais (que vivem apenas no mundo real), vivem no mundo real e no mundo da ficção (o mundo das histórias que inventamos). Neste segundo mundo podemos prescindir da lógica e das evidências e criar histórias, que transformamos em artigos de fé (adesão àquilo que se considera verdadeiro). Afinal, não existe uma incompatibilidade entre razão e fé, entre verdade e fé. São Paulo afirmou que o justo vive da fé. Na verdade, todos vivem da fé, pois a própria verdade (provisória) científica e as verdades que orientam nossas vidas são uma questão de fé. A base da existência humana é a metáfora ( figura de linguagem que produz sentidos figurados), é a crença na linguagem, nosso primeiro e maior artigo de fé. Somos seres virtuais desde o inicio da cultura no paleolítico, muito antes da realidade virtual das redes de computadores. O humano é uma realidade articulada com uma virtualidade. Temos que aceitar a insolúvel contradição dessa realidade irracional com nossa mente racional (virtualidade). A angústia existencial é o preço de nossa liberdade e racionalidade.

Poderia ser questionado que a fé cria ilusões. Mas nosso cérebro evoluiu para integrar a realidade e a ilusão, para viver no mundo real e no mundo da ficção, tornando possível suportar a existência. A arte, a filosofia e a religião existem para que a realidade não nos esmague, pois não suportamos ver a vida de frente. Somos movidos não pela verdade (que não existe ou não nos é acessível), mas pela fé, pela ilusão. Necessitamos da ilusão e devemos apostar nas ilusões e desejos que intensificam nossa vontade de potência, de viver. Nossas ilusões podem ser transformadas em artigos de fé; o erro é transforma-las em verdades.

No mundo sem verdades temos certeza que vamos morrer. Donde se conclui que o valor supremo são os momentos da existência. Em vez de se angustiar com a finitude, devemos viver plena e intensamente, viver a eternidade no momento. São os prazeres simples das relações com as pessoas e o meio no qual vivemos que dão algum sentido à existência e tornam a vida um bem precioso. A vida não é um entendimento, mas uma experiência única para cada indivíduo, pois a existência precede o pensamento. A existência é contingência, ou seja, liberdade e indeterminação. Somos afortunados por ser atores livres, sem roteiro estabelecido, do drama da vida no palco do universo, apesar de não sabermos qual o objetivo da peça com representação única e finita. O objetivo pode ser a própria representação, a existência, a travessia da vida.

Somos nossa própria luz, um projeto nunca acabado, tendo sempre que nos construir, de ser o escultor de nós mesmos. Portanto, não existe um caminho comum a todos, pois o caminho se faz ao caminhar, no devir, no fluxo preconizado por Heráclito. E esse caminho, construído na realidade e na ficção, seria o próprio sentido da vida; como afirma Camus, no Mito de Sísifo, “a própria caminhada em direção às alturas é suficiente para preencher o coração de um homem”. E a sabedoria consiste em caminhar com fé, rumo à transcendência, lamentando menos o passado, esperando menos do futuro e amando mais no presente.

Dr. Sebastião Gusmão

Professor Titular de Neurocirurgia da Faculdade de Medicina da UFMG

Tel: (38) 3531-4016

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