O mal-estar da atualidade líquida


16.07.2021

Em 1929 , no conturbado período entre as duas grandes guerras mundiais, às vésperas do colapso da bolsa de valores de Nova York, Freud escreveu o Mal-estar da civilização. Para Freud, a civilizac¸a~o ou cultura (tudo que difere o homem da vida animal) e´ fundada na base de uma renu´ncia a` satisfac¸a~o pulsional, uma constante repressa~o dos instintos. A sociedade optou por limitar a liberdade em nome da segurança: para controlar a agressividade humana, o indivíduo é reprimido em suas pulsões e vive em mal-estar. Na verdade, Freud analisou o mal-estar da sociedade de seu tempo, a modernidade.

Aqui, abordamos um mal-estar mais amplo, que engloba, além das dificuldades da vida em sociedade, também o mal-estar de existir, a angústia existencial.

Parece que o mal-estar está ligado à origem de nossa própria humanidade. Segundo a moderna física, nosso universo (nosso, pois existe a hipótese de múltiplos universos) originou-se há 14 bilhões de anos, da explosão de uma enorme quantidade de matéria e energia concentradas em um ponto. E a combinação da energia e das partículas subatômicas primitivas evoluiram por acaso e por necessidades em formas mais complexas.

Há aproximadamente 70 mil anos, no planeta terra, uma espécie animal (homo sapiens, que surgira há cerca de 200 mil anos) que perambulava pelas estepes africanas por 130 mil anos, como os demais animais, sofreu uma revolução cognitiva, passando a ter simultaneamente uma natureza biológica e cultural. Ela passou a viver a realidade objetiva (física e biológica), como os demais animais, e a criar uma realidade imaginada, fictícia (cultura). A capacidade de criar uma realidade imaginada, com palavras (como dinheiro, nação e religião), possibilitou que um grande número de estranhos cooperassem de maneira eficaz. Isso deveu-se à alta complexidade do cérebro humano, que possibilitou a linguagem simbólica e um elevado nível de consciência, gerando relativa liberdade e racionalidade.

Como a existência precede a essência, o homem existe primeiro, sem objetivo ou definição, e só então define o significado de sua vida. A consciência da realidade gerou a angústia da existência em um universo desconhecido, violento e silencioso. E o homem, condenado a ser livre, passou a perguntar o porquê, o sentido das coisas... Afinal, porque existe alguma coisa em vez do nada? De onde viemos, o que somos e para onde vamos? Qual o sentido de tudo?

Seria impossível suportar a realidade aterradora da condição humana sem uma resposta a estas questões. E o homem primitivo, coletor e caçador, criou a visão animista (crença de que entes naturais têm consciência e comunicam com humanos), recorrendo ao sobrenatural para explicar o natural. Assim, a religião (crença em uma ordem sobrenatural) origina-se da consciência da insuficiência, da fraqueza humana. Com a revolução agrícola, há dez mil anos, foram criadas as religiões politeístas, com deuses para proteger as várias necessidades do homem agricultor, principalmente quanto às plantações e rebanhos. As entidades animistas e os deuses politeístas habitavam o mundo, sem transcendência (fora do mundo da experiência sensorial).

No século VI a.C, na cidade de Mileto (atual Turquia), Tales afirma que a água é o princípio comum, imutável, ordenador e matéria básica de tudo que existe (arché). Essa proposição afirma algo sobre a origem das coisas em bases naturais, sem fabulação, e contém o pensamento “tudo é um”; e dá início à filosofia e à ciência. Outros filósofos pré-socráticos propuseram diferentes princípios: ar (Anaximandro), o material indiscriminado (Anaximenes), o átomo (Demócrito), os números (Pitágoras), a imobilidade (Parmênedes), a mudança (Heráclito).

Porém, Heráclito, ao propor o devir, a mudança, nega o arché (pois este também muda), privando a realidade de um suporte último (princípio) a partir do qual se poderia classificar e ordenar todas as coisas. A impossibilidade de associar um verdadeiro saber a uma realidade em permanente mudança, fez com que a verdade fosse colocada por Platão no mundo das ideias, das formas perfeitas, da ausência de mudança. E a filosofia ocidental, “uma nota de rodapé da obra de Platão” (Whitehead), passou a ordenar nosso mundo a partir do mundo imutável das ideias, da razão, da verdade. E nisso foi seguida pelas religiões monoteístas. A visão dualista do mundo permite explicar a complexidade terrestre, concreta, imanente (que é inerente a um ser ou objeto), por meio do simplismo da unidade ideal, celeste, transcendente (fora do mundo da experiência sensorial). Explica o mundo cá embaixo, através de um além. É o retorno ao antigo modo animista de recorrer ao sobrenatural (e agora, um sobrenatural transcendente, ideal, fora da realidade do universo) para explicar o natural. E o preço da invenção do ideal (sobrenatural) é negar o real (o natural, o mundo), diminuir a vida, o ser humano.

Tanto a física como a filosofia modernas passaram a interpretar o princípio propulsor do universo como um confronto de forças anárquicas, que, ao mesmo tempo, tendem para a desordem (lei da entropia) e podem, em condições especiais, gerar estruturas organizadas e mais complexas, com propriedades emergentes. Seria como uma vontade cega, irracional, em direção a mais potência. Na verdade, tal ideia de uma força primária que faz tudo fluir origina-se em Tales e Heráclito, é desenvolvida por Schopenhauer, e ganha forma final com Nietzsche e Bauman. Fazer filosofia é criar conceitos. E estes cinco filósofos usaram a metáfora da água para formar o conceito de fluidez contínua da realidade. Fluidez é qualidade da água, a substância mais abundante e essencial no planeta terra. Ela sofre constante e rápida mudança de forma quando submetida a tensão, se move facilmente, flui, não é facilmente contida e invade ou inunda seu caminho.

Tales afirma que o cosmos é um só, ele é água em suas mais variadas maneiras de se manifestar. Ele foi o primeiro navegador no oceano do pensamento livre, racional, filosófico. Para Heráclito tudo flui, inclusive nós, impulsionado por forças opostas. Por isso não se pode banhar duas vezes no mesmo rio.

Schopenhauer, em O mundo como vontade e representação, caracteriza esta força primordial (que ele denomina Vontade) como o produto de uma cega e insaciável vontade. A Vontade seria a própria essência do ser, do universo. Ela se manifesta no ser humano pelo desejo, o motor de nossas vidas. “E o desejo é como a água do mar: quanto mais se bebe, mais sede se tem” (Schopenhauer). Somos seres desejantes. E o filósofo da Vontade, da mesma forma que o budismo, aconselha a dominar nossos desejos para conquistar a paz e evitar o sofrimento, mesmo sabendo que “tudo terminará em desilusão e cinzas” (Eclesiastes).

Nietzsche, concordando com o devir de Heráclito e a Vontade de Schopenhauer, substitui o mundo das ideias de Platão e o demiurgo (criador) por um conceito ontológico (natureza do ser e da realidade) explicativo da totalidade daquilo que é. Para ele a razão, a causa primeira, é a vontade de potência, uma força cega que move tudo, pois tudo que acontece é vontade de potência. Esta força da força determina as eternas transformações do universo no devir de criar e destruir a si próprio, inclusive a vida, a vontade de viver. É a lei originária, a própria essência de toda a realidade, que rege as forças secundárias do universo e se manifesta na sua forma última em fenômenos físicos, biológicos e culturais, permeando a natureza e o próprio homem. Como afirma Camões:

“Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades,

Muda-se o ser, muda-se a confiança;

Todo o mundo é composto de mudança,

Tomando sempre novas qualidades”. 

A fluidez da realidade de Tales, Heráclito, Schopenhauer e Nietzsche é levada ao extremo por Zygmunt Bauman, que, na obra O mal-estar da pós-modernidade, usa esta metáfora para cunhar o mundo líquido da atualidade. Este pode ser definido como um período de liquidez, de volatilidade, de incerteza e insegurança, em que o período anterior, denominado pelo autor como modernidade sólida, seria substituído pela lógica do consumo, do prazer e da vida virtual. Segundo Bauman, na pós-modernidade líquida a mudança é a única coisa permanente e a incerteza, a única certeza. Neste mundo líquido emergem o individualismo, a efemeridade das relações, a sociedade de consumo, a fluidez. As relações amorosas deixam de ser união e passam a ser “amor líquido”, experiências pessoais de cada um, sem integração entre dois indivíduos, com possibilidade de terminar a qualquer momento. E tudo torna-se ainda mais fluido na realidade virtual da Internet, onde felicidade passa a significar estar conectado e consumindo. Esta fluidez das relações sociais, acrescida à fluidez do existir, nos inunda e nos leva pela correnteza acelerada das mudanças, nos privando da segurança do duradouro, do sólido, e intensificado o mal-estar.

A pandemia leva ao limite nosso mal-estar social e existencial na atualidade líquida de transformações aceleradas e pouca coesão social. Ela nos limita a convivência social, já diluída na pós-modernidade líquida, e gera estatísticas diárias de mortes que nos confronta com o nada. E tudo isso é ainda mais intensificado em nosso país com sua classe política corrupta e incompetente, que combate a pandemia com pseudociência. A peste em nós dificulta combater a peste da Covid-19.

O mal-estar origina-se na fluidez da existência sem sentido predeterminado e na limitação de nossa vontade e segurança na atual sociedade líquida. Vale a pena esta vida líquida, fluida? A fluidez é inerente à nossa existência neste mundo líquido, do qual fazemos parte. Portanto, se somos parte, não temos autoridade para julgar se a existência vale ou não a pena. E, como afirma Camus, desistir da vida, como solução do absurdo (o conflito insolúvel entre nossa mente racional em um mundo irracional), seria uma derrota, uma negação da própria condição da existência do homem. Ser consciente da própria vida num grau máximo é viver num grau máximo, pois o destino do homem encontra-se dentro dele próprio. O que nos cabe é livrar-se do peso do passado e do futuro e viver o mundo real no presente. O instante presente que vivemos é o mais importante da vida, pois é o único que existe na fluidez da existência.

Nossa vontade de potência, de transcendência, derivada da força que governa o universo, permitiu a caminhada das estepes africanas até o espaço sideral, na saga de conquistar o que existe entre o céu e a terra e que nossa pouca filosofia ainda não conhece (Shakespeare). Esta vontade de potência é vontade de superar a nós mesmos, de ir além de nossa humanidade, de afirmar a vida, de transcender.

“Enfim o horizonte nos aparece novamente livre, embora não esteja limpo, enfim os nossos barcos podem novamente zarpar ao encontro de todo perigo, novamente é permitida toda a ousadia de quem busca o conhecimento, o mar, o nosso mar, está novamente aberto, e provavelmente nunca houve tanto mar aberto” (Nietzsche). Nosso destino é navegar neste mundo líquido para a imensidão abissal do oceano da imanência. E o sucesso desta navegação rumo ao desconhecido, da mesma forma que nossa jornada a partir das estepes africanas, depende de nossa coesão, pois foi o espírito gregário, social, que determinou o sucesso de nossa espécie. Nossa desagregação pode levá-la ao naufrágio. Navegar juntos é preciso.

“Vale a pena? Tudo vale a pena

Se a alma não é pequena.

Quem quer passar além do Bojador

Tem que passar além da dor.

Deus ao mar o perigo e o abismo deu,

Mas nele é que espelhou o céu” (Fernando Pessoa).

Dr. Sebastião Gusmão

Professor Titular de Neurocirurgia da Faculdade de Medicina da UFMG

Tel: (38) 3531-4016

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