SERVIDÃO VOLUNTÁRIA
07.08.2020
Étienne de la Boétie (1530-1563) escreveu o DISCURSO SOBRE A SERVIDÃO VOLUNTÁRIA, em 1548, em resposta aos conturbados eventos da França do século XVI, em decorrência do início da monarquia absoluta e das guerras religiosas. Passados quase cinco séculos, nada superou este discurso em favor da liberdade e contra os tiranos, pioneiro da teoria da alienação e da desobediência civil.
Italo Calvino afirmou que um clássico é um livro que nunca terminou de dizer aquilo que tinha a dizer. As coincidências entre o totalitarismo e o uso politico da religião no século XVI e em nossos dias tornam atuais as reflexões de Boétie sobre a liberdade.
Na França do século XVI, o rei tirano (Francisco I) e líderes religiosos (católicos e protestantes) em disputa sangrenta, usavam a massa ignorante em servidão voluntária. De forma semelhante, hoje, rebanhos seguem, em servidão voluntária, políticos e pastores que lhes arrancam o dízimo e a liberdade.
Boétie faz um trabalho de genealogia para procurar entender o fato absurdo da servidão voluntária de um povo ao poder de um líder que oprime esse mesmo povo. Ele afirma que são os próprios homens que se deixam dominar, pois caso quisessem sua liberdade de volta, precisariam apenas de se rebelar para consegui-la. É possível resistir à servidão sem recorrer à violência, pois a tirania se destrói sozinha, quando os indivíduos se recusam a consentir com sua própria servidão. Como o poder da autoridade depende da obediência consentida dos oprimidos, basta a recusa coletiva em obedecer ou colaborar.
Mas qual a razão da entrega de nosso bem maior, a liberdade? Segundo Boétie, o poder do tirano origina-se, sobretudo, da magia que seu nome é capaz de cativar e se mantém em razão de uma suposta segurança. A alienação junto à multidão, sob o jugo de um tirano, leva à suposta segurança, e a liberdade incomoda porque está próxima da solidão. Parece ser mais seguro pertencer ao rebanho do tirano (ou pastor) do que ser responsável solitário pelo próprio destino. E nos acostumamos ao hábito da servidão. O hábito garante nossa segurança e nos poupa da angústia de pensar, nos condenando a sermos sempre os mesmos. Somos seduzidos pela servidão e os tiranos são grandes porque nos colocamos de joelhos.
Assim, os próprios cidadãos, por hábito, ignorância e fraqueza moral, voluntariamente se submetem à tirania. Um pequeno número deles participa do círculo do poder, recebendo favores do tirano. Esse pequeno número de homens têm seus próprios súditos, que também desfrutam de favores. Esses súditos mantêm uma série de subordinados que, por sua vez, possuem também seus próprios subordinados. Essa rede piramidal, com o tirano no topo, controla a massa ignorante da base da pirâmide por meio das políticas de “pão e circo” e dos discursos religiosos que envolvem o tirano em um manto de devoção. A vontade de servir engendra uma sociedade tirânica do topo à base da pirâmide. Enquanto alguns poderosos (tiranos menores) servem-se dos restos do tirano maior, a grande maioria vive na miseria de esperanças utópicas. Isso foi dito há quase cinco séculos e parece que Boétie está descrevendo nosso atual sistema politico de coalisão (ou de corrupção).
Hoje, vivemos as pestes moral e da pandemia da Covid-19. A servidão voluntária a líderes incompetentes, corruptos e autoritários compromete nossa liberdade e alimenta a pandemia. Somente a resistência com o uso da razão pode nos salvar dessas pestes. Nada justifica entregar a liberdade de milhões a déspotas dos dois extremos de ideologias escravizantes.
A síntese da obra está na frase: “Sede resolutos em não servir mais, e estareis livres”. Decidir em não servir, em não seguir o rebanho, em resistir às ideologias da moda, em não aceitar algemas reais ou virtuais. É indigno o ser humano viver em estado de submissão, devendo conquistar a liberdade a partir da tomada de consciência da existência da opressão despótica. A ignorância é a arma mais destrutiva da liberdade. Somente a educação pode reduzir os milhares de analfabetos funcionais, evitando a servidão voluntária, a perda da liberdade. O conhecimento liberta.
A liberdade, um dom natural que qualquer selvagem (racional ou não) defende até a morte, é nossa. Podemos mantê-la ou entregar a qualquer um. No último meio século a entregamos a líderes quase sempre incompetentes e corruptos, anões colocados no topo da pirâmide. Tanto a servidão como a liberdade estão em nós; a escolha é nossa. Que as asas da liberdade se abram sobre nós e nos livre da servidão.
Dr. Sebastião Gusmão
Professor Titular de Neurocirurgia da Faculdade de Medicina da UFMG
Tel: (38) 3531-4016