Milagre musical mineiro
13.05.2019
Minas Gerais é do ouro. Ao redor das minas, um novo povo nasceu e floresceu, em toda sua exuberância: nobre, distinto, precioso. Com a farta riqueza do ouro, uma sociedade urbana se formou ao lastro e à sombra de seus minerais, proporcionando a integração do que havia de melhor nas várias matrizes que habitavam e faziam o Brasil-Colônia.
Os homens a procuram, muitos se perdem por ela, outros tantos se descobrem ao lado dela e para bem poucos ela se revela. Ah, nunca se perca de mim... Caminhe sempre ao meu lado, desse lado ensolarado que achei para namorar...
Da tecnologia do Europeu, da espirituosidade do negro e da boa convivência dos indígenas a Era do Ouro produziu gênios improváveis e deixou um legado amparado no que havia de sofisticado no Brasil do século XVIII. A produção cultural da Era do Ouro foi o encontro dessas diferentes matrizes, um entrelaçar e somar de gêneros e estilos. Talvez por isso, impensada, inusitada, improvável e mágica; divinamente mágica.
A música pré-clássica europeia não foi simplesmente repetida aqui. Mas a ela se incorporaram os elementos que povoavam as minas, como a sonoridade rítmica e os cânticos dos negros e os instrumentos e vocalizes dos indígenas. Aqui a pauta não era plana com a geografia do Velho Continente, mas seguia o desenho do horizonte, em um sucessivo subir e descer montanhas de quem quer alcançar os céus e tem a sua frente o infinito. Podemos dizer que no cadinho do tempo, as várias formações musicais dos que aqui chegavam e viviam se fundiram harmoniosamente, gerando uma terceira arte.
Fato que ilustra bem essa constatação e já faz parte da história da música brasileira foi o episódio narrado em livro pelo maestro Júlio Medaglia, que enviou para uma das maiores autoridades em música pré-clássica da Europa a partitura de uma música composta no século XVIII, com a seguinte indagação: “Professor Sr. Hans Holm, o senhor que é diretor do Arquivo Nacional de Munique e a maior autoridade europeia em música pré-clássica terá tempo ilimitado para identificar o autor desta música, onde viveu e em que época”. A resposta veio de Munique: “É música de primeira qualidade, escrita por um ‘grande mestre’, estilisticamente o mais puro pré-clássico, e foi composta dentro dessa região” (indicou no mapa um perímetro geográfico que atingia mais ou menos o sudoeste alemão, noroeste da Áustria e norte-nordeste da Itália, proximidades onde circularam com frequência mestres como Johann Cristian Bach, Sammartini, Gluck, Vivaldi e Mozart). Medaglia lhe respondeu: “Quanto à primeira parte de sua reposta de pleno acordo, mas quanto à localização da obra houve um pequeno engano de quase 10.000km... Essa música foi escrita por um mulato em pleno sertão brasileiro”. Em que outro lugar do Brasil-Colônia um mulato poderia compor uma música com essa magnitude senão nas minas, no caminho entre a senzala e a sacristia?
Minas é a terra do improvável, do raio de sol que corta as nuvens antes da tempestade. E não da lama que desce a montanha para soterrar a nossa história. E o milagre musical do Mulato mineiro do século XVIII renasceu séculos depois, na confluência de suas esquinas.
Petrônio Souza Gonçalves
Petrônio Souza Gonçalves é jornalista e escritor