A PESTE II


Albert Camus

16.07.2020

Na edição anterior publicamos o texto A PESTE, no qual correlacionamos a obra de Camus com a crise moral e política que vivemos. O colega Dr. Pittella, professor de Patologia da  UFMG e um dos maiores expoentes da neuropatologia mundial, nos enviou considerações sobre o referido texto, que de forma excelente o complementa. Com a devida autorização publicamos as considerações do Prof. Pittella, a seguir: “Obrigado pela oportunidade de ler o excelente texto que nos leva a refletir sobre o momento atual pelo qual passa o nosso país e o mundo e sobre como viver a vida. Camus é um dos grandes escritores que mais aprecio, ao lado de Dostoiévski, James Joyce, Clarice Lispector, Virginia Woolf, Fernando Pessoa e Graciliano Ramos. Li "A Peste" e "O Estrangeiro" quando estava no ensino médio (curso científico) e na época adquiri outros livros de Camus, incluindo um diário no qual ele relata uma viagem que fez ao Brasil, na qual menciona a emoção de fazer parte de uma multidão ao assistir a uma partida de futebol. No mais, é como você escreveu, ele é um dos artistas mais íntegros da história, não se deixando encantar por ideologias que sacrificam a pessoa em nome do coletivo ou que pretendem reformar ou criar um novo ser humano a qualquer custo. E o acaso de nossa existência pode ser exemplificado pela morte de Camus ainda jovem (46 anos) em um acidente de automóvel, como que confirmando suas ideias e seus sentimentos sobre uma natureza “cega” frente à nossa racionalidade que deseja enquadrar o mundo e a nós mesmos em algum esquema ideológico para dar um sentido à vida. O poeta Stéphane Mallarmé, em seu último grande poema, “Um lande de dados”, escreveu: ‘Todo pensamento emite um lance de dados que jamais abolirá o acaso de nossa existência.’ Não há uma receita universal para dar um sentido à vida e para enfrentar as pestes que surgem durante a nossa existência. Penso que as coisas que fazemos e para as quais damos significado fundamentam-se em nossas emoções, nossos sentimentos (e na falta deles nos personagens tenebrosos da história) e nosso uso da razão, o que é uma explicação e uma justificativa para sermos o que somos.

Concordo com você que A Peste (assim como o Grande Sertão de Guimarães Rosa) está em nós mesmos. A notícia “boa” é que toda peste acaba e podemos voltar a ser e agir como antes ou, então, podemos internalizar novos hábitos, sentimentos e ideias que nos ajudam a evitar novas pestes ou, ao menos, minimizar seus impactos.

Um último comentário sobre a história muito resumida do Brasil, que ajuda a explicar porque o nosso país se tornou o que é: o modo predatório da colonização do país pelos portugueses (nenhuma escola de ensino superior nos primeiros 300 anos após o “descobrimento”); a Independência, na qual o filho do Rei dos nossos colonizadores é um dos principais responsáveis por ela, cria uma monarquia e é declarado imperador, inclusive mais tarde em Portugal (bem diferente das colônias espanholas da América do Sul que lutaram em guerras contra a Espanha, com vários heróis: Bolívar, Sucre, San Martín, sem falar dos Estados Unidos, que travaram uma guerra contra a maior potência da época para conseguir a independência); a abolição tardia da escravidão, um ato em grande parte decidido nos gabinetes, sem menosprezar os abolicionistas, embora não dando direitos à propriedade e oportunidades aos negros (em comparação aos Estados Unidos que sofreram uma guerra civil para terminar com a escravidão, mas não com o racismo); a República, um golpe de estado das elites militares; nossa República marcada pela política do Café-com-Leite, duas ditaduras, suicídio, impeachment e renúncia de presidentes e um pós-regime militar com presidentes eleitos democraticamente, mas em geral medíocres, preocupados em se reeleger e eleger seu sucessor para dar continuidade à corrupção endêmica (até o culto e vaidoso Fernando Henrique, que conseguiu a mudança da reeleição; lembrar que o Plano Real foi criado no governo de Itamar Franco, um presidente que não se envolveu em corrupção). Pelo visto, temos ainda um longo caminho pela frente, para criar uma autêntica república e não um país cuja história tem sido escrita por uma elite patrimonialista e assistida quase que passivamente por um povo constituído em grande parte por analfabetos funcionais”.

Dr. Sebastião Gusmão

Professor Titular de Neurocirurgia da Faculdade de Medicina da UFMG

Tel: (38) 3531-4016

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