Das inúmeras vantagens de ser bobo
20.11.2018
Ele é um político de expressão nacional. Não dividimos as mesmas ideias, mas o mesmo respeito. Sempre nos saudamos de longe, reverencial, bem ao modo dos mineiros. Era tarde de quinta-feira, fazia o trajeto contrário de quem inicia o fim de semana, em voo no Santos Dumont para Belo Horizonte, quando nos saudamos, mais uma vez, de longe, na sala de embarque do outrora charmoso aeroporto do Rio de Janeiro. Ficamos em nossa distância, lendo alguma coisa naquele quente entardecer carioca. Chamada para o embarque, nos alinhamos em fila, avião adentro.
Sentei-me à janela, depois de duas belas moças, quando ele se apresentou com o bilhete na mão e uma boa piada engatilhada. Risos, cordialidades, pediu a moça para trocar de lugar com ele e tomou posto no meio, com ares de quem quer trocar um bom dedo de prosa. E assim foi aquele vôo tranqüilo no trajeto Rio-Belo Horizonte, quando o avião seguia para o interior do Brasil.
Depois de prosas meias, bastidores da política nacional, me perguntou porque não assumia uma postura de partir com determinação para a vida pública, dizendo ser justificada por uma atuação junto aos eventos públicos. Respondi dizendo ser eu bobo, citando um velho texto de Clarice Lispector. Para minha resposta ficar mais convincente, fui lembrando os versos daquele texto/crônica da Clarice nossa de todo dia. Lembrava e falava, para ele que ouvia como quem, de alguma forma, anotava. A cada nova frase, me puxava pelo ombro, pedindo-me que repetisse como quisesse guardar na palma das mãos um cacho de boa história. Eu falando e ele bebendo minha empolgação à fonte. A menina ao lado, sem querer, se manifestou quando disse uma frase que falava de úlcera. Ele riu, com certo desdém, pendido para que voltasse ao texto. Até que, depois de muitos retalhos e retoques, esgotou o que a memória sabia. Ele riu, riu, ficou parado olhando imóvel e eu me recompondo depois de muito cavoucar a lembrança. A menina ainda falou: “ela é uma das minhas preferidas”. Solidarizei-me, dizendo ser a minha também, desde sempre.
Bom, o texto da Clarisse se chama “Das vantagens de ser bobo” e é algo precioso. Está por aí, espalhado nas bibliotecas e nas várias facetas da internet.
Ontem, pouco depois do almoço, o nosso amigo político me telefonou, dizendo que iria discursar para resolver uma pendenga que se arrastava dentro do partido. Queria que eu destacasse algumas passagens do texto que, segundo ele, cairia muito bem para a ocasião. Passei uma por uma, quando do outro lado alguém comemorava cada frase de nossa inspirada cronista. Quando disse uma, ele parou: “esperaí, vai ser com essa que vou abrir”. Falei mais uma vez, ele recitou de volta até que veio se despedir, quando fiz meu pedido final: “Meu bom amigo, esse texto da Clarisse é literatura, beleza sublimada, coisas do andar superior, não vá usá-la em causas menores, não vai tirar a nobreza da beleza de ser bobo e escrever o que se pensa e sente, né!”. Ele sorriu, não ponderou, agradeceu-me e desligou.
Horas depois, apenas uma mensagem chegou-me pelo telefone: “Não falei nenhuma frase do texto, mas contei o teor de nossa conversa”, dizendo acreditar que o encontro partidário era algo nobre, que poderia mudar os destinos do país, e que não valeria falsas palavras. Antes do ponto final, a despedida: “sua ponderação nos deu mais uma vitória”. Pensei comigo, essa é mais uma das infinitas vantagens de ser bobo, como uma graça de Deus!
Petrônio Souza Gonçalves
Petrônio Souza Gonçalves é jornalista e escritor