O sentido da vida em tempos de pandemia


15.06.2021

Em tempos de pandemia, frente ao risco de morte que pauta nossa existência de cadáver adiado, interrogamos sobre o sentido da vida. Essa é a interrogação suprema da investigação filosófica. Não existe um sentido preestabelecido da vida. O que existe é a realidade objetiva (a natureza, o universo) e as narrativas que nossa mente racional elabora para dar sentido ao drama da existência humana em um universo irracional.

Ao longo da história, quatro respostas foram elaboradas para dar sentido à vida e nos colocar em harmonia com a existência: a religiosa, a grega clássica, a do humanismo moderno e a do individualismo contemporâneo. Elas evoluíram da transcendência (fora da realidade do mundo) e do menos humano (divindade, harmonia do cosmos) até à imanência (próprio ao mundo) e ao mais humano (razão, liberdade, sentimentos). Mas as concepções filosóficas e da religião, diferentemente das teorias científicas, não são superadas. E ainda hoje essas respostas continuam pautando as vidas de muitos. Ambas, religião e filosofia, procuram nos oferecer uma tábua de salvação para conquistar uma vida boa, que está sempre ligada à superação dos medos, especialmente o medo da morte. Sem a morte elas seriam desnecessárias.

A resposta religiosa é a primeira narrativa construída pelo homem para dar sentido à existência em um mundo adverso e estranho. O sentido da vida é a harmonia do homem com os mandamentos divinos. E essa harmonia é recompensada com a vitória sobre a morte, a imortalidade na transcendência. Essa é a solução mais bela e mais simples; basta acreditar, ter fé. Desde os primórdios, as religiões dão sentido à vida da maioria da humanidade, sendo a única abordagem da questão até o surgimento da filosofia grega. A religião promete a salvação da morte pela fé em Deus, enquanto a filosofia advoga a salvação da angustia da morte pela razão, por nós mesmos, procurando a harmonia com o universo, ou com a humanidade, ou consigo mesmo.

A origem da visão de mundo grega encontra-se na mitologia, na TEOGONIA de Hesíodo (século VII a.C.), que relata o nascimento dos deuses e da harmonia cósmica. Essa ordem cósmica harmoniosa será racionalizada e secularizada pelo discurso filosófico. Para a corrente dominante do pensamento grego, o cosmo, do qual fazemos parte, é ordenado e compreendido pela razão humana e o sentido da vida é colocar-se em harmonia com o mundo. O divino confunde-se com o próprio mundo, com a ordem do cosmo, que serve de modelo à conduta humana. E a morte não é para ser temida, ela é apenas uma passagem, pois somos um fragmento eterno do cosmo. Esse fragmento de imortalidade anônima, dissolvida na harmonia cósmica, parece muito pouco, motivo pelo qual o cristianismo, que oferece uma salvação completa (corpo e alma), substitui a filosofia grega durante a Idade Média. Mas o preço a pagar é duplo: a razão é submetida à fé, e o caminho da existência não pertence mais ao homem, mas a Deus.

No Renascimento e na revolução científica do século XVII, que causaram o desmoronamento da autoridade religiosa e do cosmos grego ordenado, nasce o humanismo moderno. Enquanto para a filosofia grega o sentido da vida era decidido em relação ao cosmos e, para o cristianismo, em relação a Deus, o humanismo o coloca no próprio homem, que torna-se o centro do universo e procura por si mesmo dar sentido e coerência ao mundo. A subjetividade da mente passa a fundamentar a legitimidade de nossas representações da realidade. O sentido da vida desloca-se para a harmonia com os outros, a participação no progresso da história da humanidade. E surgem as ideologias modernas de salvação terrestre: humanismo, cientificismo, patriotismo, liberalismo, socialismo.

A quarta resposta, a do individualismo, é dada pela filosofia moderna, inaugurada por Nietzsche, que nega os ídolos da metafísica e das ideologias: Deus, o cosmo ordenado e o humanismo do Iluminismo. A essência do mundo seria um vasto e caótico campo de forças ou de pulsões sem sentido e sem razão. O mundo da consciência clara, da representação, é apenas um epifenômeno deste mundo do querer inconsciente e desprovido de sentido. Tudo é imanente, e excluídos os grandes princípios transcendentes, resta apenas a preocupação consigo mesmo, o individualismo. O sentido da vida será a harmonia consigo mesmo, a vida intensa e livre, a procura da felicidade acima de qualquer ideal ou valor, cuja função é negar a vida.

A desconstrução nietzschiana deu origem, no século XX, a novo humanismo, livre dos ídolos da metafísica e com superação do individualismo, visto que o homem só é homem no seio de uma comunidade humana. O amor e o aperfeiçoamento de si mesmo, extendido à simpatia e fraternidade pelos outros, tornam-se o sentido da vida. Enquanto os ideais tradicionais (religiosos, patrióticos, revolucionários) se enfraquecem, o amor, única fonte de ideal inteiramente imanente a nossas existências, confere uma dimensão sagrada à própria existência, sem cair nas ilusões da metafísica tradicional. Assim, Camus, no A PESTE, uma metáfora existencial do absurdo da condição humana, afirma que, durante a peste, os homens honestos têm certeza apenas do sofrimento e do amor; e a resposta possível ao absurdo da condição humana é a resistência por meio da compaixão e do amor à vida como ela é. A sabedoria consistiria em lamentar menos o passado, esperar menos do futuro e amar mais no presente o real, como ele é. Se faz parte da condição humana estar neste mundo, devemos estar de forma ativa, desafiando nosso destino. E o mesmo Camus, em O MITO DE SÍSIFO, compara o absurdo da vida humana com o mito grego de Sísifo, condenado a repetir eternamente o trabalho de empurrar uma pedra até o topo de uma montanha, que a seguir rolava montanha abaixo. Sísifo aceita a vida, apesar de condenado a uma tarefa sem sentido, pois, como conclui o autor, “a própria luta em direção às alturas é suficiente para preencher o coração de um homem; é preciso imaginar Sísifo feliz”.

Vivemos em busca de nossa essência, do sentido em um mundo desconexo, irracional. Por não sabermos o sentido do universo, somos livres para criar nosso próprio significado para a vida, o que a torna estimulante, desafiadora, embora dramática. Somos afortunados por ser atores do drama da vida no palco do universo, apesar de não sabermos qual o objetivo da peça com representação única e finita. O objetivo pode ser a própria representação, a existência, a travessia da vida. Afinal, a existência precede a essência; e o caminho que se faz ao caminhar, torna-se mais importante que a meta. Como afirma Guimarães Rosa: “o real não está na saída nem na chegada; ele se dispõe para a gente é no meio da travessia”. E a grandeza é dada justamente pela finitude da travessia, motivo pelo qual na EPOPEIA DE GILGAMESH, a mais antiga obra literária de que se tem notícia, escrita em língua suméria, no século XVIII a.C (portanto, 10 séculos antes do ANTIGO TESTAMENTO, e que o inspira em várias passagens), o herói parte em busca da imortalidade e retorna convencido pelos deuses de que uma vida de mortal bem sucedida é melhor do que a imortalidade, que é contrária à condição humana. Da mesma forma, na ODISSEIA (século XVIII a.C), Ulisses preferiu retornar a Ítaca para continuar sua existência finita, e recusou a eternidade oferecida pela ninfa Calipso. Decisão aprovada nos versos do poeta grego Píndaro: “Ó minha alma, não aspira à imortalidade: esgota o campo do possível”.

A ausência de um sentido preestabelecido não condena a vida à insignificância, mas nos libera para buscar a sua maior intensidade em um sentido criado por nós mesmos. Independentemente do sentido criado por cada um, a própria vida tem sentido em si, sendo o que existe objetivamente de mais próximo do sagrado, do transcendente. Somos parte da natureza, o universo refletindo sobre si mesmo, a diferença entre o ser e o nada... Como afirma Dostoiévski, devemos amar mais a vida do que o sentido da vida. O fundamental é preservar a natureza, amar a existência no presente, e viver a eternidade no instante.

Dr. Sebastião Gusmão

Professor Titular de Neurocirurgia da Faculdade de Medicina da UFMG

Tel: (38) 3531-4016

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