Liberdade e Dignidade Humana


16.05.2021

A liberdade e a dignidade dela decorrente é a essência do ser humano, o que o torna, segundo o filósofo grego Protágoras, a medida de todas as coisas. Em DIÁLOGOS, Platão coloca justamente Protágoras relatando o mito grego da criação dos seres vivos. Os deuses criaram os animais, atribuindo a cada espécie certos dons naturais e uma posição específica em um cosmos ordenado. Mas, no final, não sobra nenhum dom nem nenhum lugar particular para os seres humanos. Para compensar essas carências, é concedido ao homem a possibilidade da liberdade e do conhecimento para superar a ausência de dons e procurar seu lugar na natureza. O devido uso da liberdade determina a dignidade do homem e seu lugar privilegiado no mundo, acima dos demais animais e próximo dos deuses. Desde então, liberdade, conhecimento e dignidade humana caminham juntos.

Essa narrativa mítica é racionalizada pela filosofia grega. Para a corrente dominante do pensamento grego, o cosmos, do qual fazemos parte, é ordenado e compreendido pela razão humana. E a dignidade humana consiste em usar o conhecimento para colocar-se em harmonia com esse cosmos ordenado.

Na narrativa judaica, Deus criou o homem como um ser perfeito e imortal. Mas, devido à desobediência a Deus, tornou-se um ser degenerado, mortal e que carrega para sempre a culpa do pecado original. O cristianismo substitui a filosofia grega durante a Idade Média e Santo Agostinho, que marca a filosofia medieval, leva ao extremo a maldição bíblica. Define o homem como um ser marcado pelo pecado e pela culpa, e que nunca mais poderá desejar a realização de um destino digno na terra devido sua natureza degradada. O que resta é desprezar a vida terrena, que nada vale, e obedecer aos mandamentos divinos para garantir uma imortalidade celestial e evitar uma eternidade infernal.

Uma mudança de paradigma, uma ruptura fundamental com o mundo antigo, vai ocorrer no século XV, com Giovanni Pico della Mirandola (1463-1494). Ele recoloca o homem no centro do universo (antropocentrismo) e restabelece sua dignidade. Para isso reinterpreta a narrativa bíblica do Genesis sobre a criação do homem, fundindo-a com o mito grego. No DISCURSO SOBRE A DIGNIDADE DO HOMEM, escrito em 1486 (quando tinha a idade de 23 anos), coloca Adão como um ser livre, digno, nobre e centro da criação, ao narrar: “Deus tomou o homem como obra de natureza inde?nida e, colocando-o no meio do mundo, falou-lhe deste modo: Ó Adão, não te demos nem um lugar determinado, nem um aspecto que te seja próprio, nem tarefa alguma especí?ca, a ?m de que obtenhas e possuas aquele lugar, aquele aspecto, aquela tarefa que tu seguramente desejares, tudo segundo o teu parecer e a tua decisão”.

Esse discurso é o princípio fundador do Humanismo e do Renascimento, e vai influenciar toda a filosofia posterior. Nele é formulado, pela primeira vez, a ideia moderna de liberdade, quando afirma que não existe natureza humana nem nenhuma ordem natural à qual o homem deva adequar-se. A especificidade do homem decorre de ele estar fora da natureza, pois tem a faculdade de transformar por sua livre vontade as limitações naturais e construir sua própria história.

Giovanni Pico della Mirandola teve como objetivo libertar o homem das amarras medievais e restituir-lhe a dignidade. Pagou o preço da ousadia com a perda da própria liberdade. Foi declarado herético pelo Papa Inocêncio VIII, sendo o primeiro autor a ter um livro impresso banido pela igreja. Fugiu para a França, onde foi preso e, para não enfrentar a Inquisição, renunciou a seus escritos. Morreu aos 31 anos de idade, assassinado.

No século seguinte, Étienne de la Boétie (1530-1563) escreveu o DISCURSO SOBRE A SERVIDÃO VOLUNTÁRIA (em 1548, quando tinha 18 anos de idade), que também iria marcar o mundo ocidental. Ele constatou que, da mesma forma que a liberdade, a servidão também faz parte de nossa natureza. Isso é observado no fato absurdo da servidão voluntária de um povo ao poder de um líder que oprime este mesmo povo. A alienação junto à multidão, sob o jugo de um tirano, leva à suposta segurança, e a liberdade incomoda porque está próxima da solidão. Parece ser mais seguro pertencer ao rebanho do que ser responsável solitário pelo próprio destino. Assim, os próprios cidadãos, por ignorância e fraqueza moral, voluntariamente se submetem à tirania.

A vida em sociedade só pode ser digna em sistema politico compatível com nossa natureza livre, ou seja, a democracia. E hoje ouvimos vozes arrogantes clamarem por regimes totalitários, que sempre levaram a Humanidade à ruína. Querer reviver tais regimes seria negar nossa própria essência de seres livres e transformar o passado em coveiro do presente, ignorando a história. Totalitarismo significa perda da liberdade e, consequentemente, da dignidade humana.

O Humanismo moderno está assentado nas premissas de que Deus criou o universo ordenado (cosmos) e colocou em seu centro o homem, criado semelhante à própria divindade. Mas Copérnico nos tirou do centro do mundo; Darwin mostrou que o homem é apenas um animal como os demais, fruto da evolução ao acaso. A física moderna destruiu o cosmos organizado e instalou o caos e, finalmente, Nietzsche declarou que “Deus morreu”. Dessa desconstrução parece não ter sobrado nada da dignidade do homem como um ser especial. Mas, o próprio processo mental dessa desconstrução evidencia o que restou: nossa mente livre e criadora. Restou o homem solitário, privado de qualquer transcendência ou ideal, em um universo silencioso e irracional. Mas livre para conduzir sua existência.

A liberdade começa onde termina a ignorância, pois o ignorante só pode imaginá-la como ausência de amarras externas. Este aspecto, embora fundamental, não esgota o conceito de liberdade. Não estar acorrentado não nos torna livres. As correntes são feitas sobretudo de pensamentos. A liberdade envolve a capacidade de pensar criticamente e fazer escolhas com base no conhecimento e na responsabilidade. A ignorância, que gera o medo, o preconceito e as ilusões falsamente reconfortantes, nos aprisiona. E a educação, a aquisição de conhecimento, é libertadora.

A liberdade é limitada pela condição humana e especialmente por nossa natureza social. Nossa vida é quase só convivência. Daí a necessidade da ética para estabelecer o bom convívio social e garantir a liberdade de todos. E a liberdade passa a ser o direito de fazer tudo aquilo que não é prejudicial e nem limita a liberdade dos outros.

Por sermos autônomos e indeterminados, uma grande responsabilidade pesa sobre nossas ações. Somos parte do universo e temos que usar nossa mente livre e criadora para viver em harmonia no mundo. A desarmonia é castigada pela própria natureza. Assim, um simples vírus passou a pautar nossas vidas. Quando Prometeu deu o fogo à Humanidade, Zeus o castigou, pois o domínio do fogo colocava o homem muito acima dos demais animais, causando um desequilíbrio que poderia fazer mal à natureza. E parece que o sábio pai dos deuses tinha razão. Muitos cientistas acreditam que a destruição das florestas com o fogo doado por Prometeu está na origem da atual pandemia. Na verdade, Prometeu doou o fogo e o conhecimento. A culpa é nossa de não usar o conhecimento. E sem conhecimento não existe liberdade responsável, e a Floresta Amazônica terminará em chamas. E nós também, pois foi a floresta que nos gerou e nos mantém.

A dignidade humana está assentada em nossa mente livre, geradora de conhecimento, para determinar nosso destino e procurar desvendar o universo. Somos nosso próprio artífice e o próprio universo refletindo sobre si mesmo. Que nada nos defina, que nada nos sujeite, e que a liberdade continue sendo nossa essência.

Dr. Sebastião Gusmão

Professor Titular de Neurocirurgia da Faculdade de Medicina da UFMG

Tel: (38) 3531-4016

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