Memorial do tropeiro e do ferreiro


10.02.2022

A Ágora de Atenas era a grande praça central da cidade, limitada por mercados, feiras livres e templos para vários deuses. Era o local de discussão dos destinos da polis (cidade), donde o termo “política”, e de diálogo dos amantes do saber, ou seja, dos filósofos (filosofia; philo: amigo , sofia: sabedoria) na procura da verdade. Assim, a democracia e a filosofia foram geradas na Ágora de Atenas, e até hoje formam a base da civilização ocidental.

O apelido de Atenas do Norte foi cunhado na segunda metade do século 19 em clara referência ao intenso movimento cultural em Diamantina e sua importância na região do norte de Minas. Tal relevância cultural já se fazia sentir desde os tempos de Arraial do Tijuco, como observou Saint-Hilaire (naturalista e viajante francês) em 1817, e continua na atualidade. Como Atenas, o Arraial do Tijuco também se estruturou em torno de templo religioso (Capela de Santo Antônio) e das feiras livres (rancho dos tropeiros), que se transformaram na Catedral e no Mercado dos Tropeiros (hoje conhecido como Mercado Velho), a Ágora da Atenas do Norte. Era o local não apenas de comércio, mas também de encontro dos diamantinenses com habitantes de outras vilas para trocar informações e conhecimentos e discutir os problemas da época.

Na atual Praça Barão de Guaicuí, o tenente Joaquim Cassimiro Lages construiu, em 1835, um rancho destinado ao comércio de tropeiros, denominado Mercado dos Tropeiros. Em 1889, neste mesmo local, foi construído Mercado Municipal, local de encontro dos comerciantes das várias cidades do Vale do Jequitinhonha. As mercadorias chegavam à Diamantina conduzidas pelas tropas que cortavam o sertão mineiro, e retornavam com bens manufaturados para as populações rurais. A construção de arcadas rústicas em madeira, imponente e suntuosa, é um dos principais símbolos da cidade. Os arcos, no período colonial, eram usados para separar o altar-mor da nave das igrejas, e também, como ornamentação das vigas de sustentação dos templos. O uso dos mesmos no Mercado Velho foi uma novidade arquitetônica para a época. Relata-se que Oscar Niemeyer teria se inspirado nos arcos do Mercado Velho de Diamantina, terra de seu amigo Juscelino Kubistchek, para desenhar os traços do Palácio da Alvorada, em Brasília. 

Os tropeiros tiveram importância decisiva na história de nosso país, especialmente em Minas Gerais, onde também eram responsáveis pelo transporte do ouro e do diamante para o Rio de Janeiro. Foram os primeiros agentes de transporte e difusão cultural. Eles abasteciam as vilas e levavam correspondências e informações, sendo de fato uma espécie de transporte, correio e meio de comunicação primitivo. Muitas cidades surgiram do local de pouso (rancho) dos tropeiros. A profissão de tropeiro era de grande importância e respeito no período colonial. O herói nacional, Tiradentes (1746 — 1792), foi, além de dentista, militar e ativista político, também tropeiro. Os ferreiros também tiveram papel fundamental em nossa história, pois representavam a indústria primitiva. Das forjas das fábricas e oficinas de ferro saiam os utensílios usados nas residências, na agricultura, nas tropas e nos garimpos.

Até a metade do século 20 as fábricas de ferro e as tropas constituíam, respectivamente, a indústria e o meio de transporte no interior do Brasil. A modernidade tornou as forjas e o transporte em muares obsoleto. Mas o passado construído pelos tropeiros e pelos ferreiros não passou. Continua vivo em nossos povoados e cidades. 

Hoje, o Mercado Velho é um centro cultural (Centro Cultural David Ribeiro) e um dos lugares mais visitados da cidade. Recebe todos os sábados pela manhã a feira da cidade, onde são comercializados comidas tradicionais, peças em tapeçaria, artesanatos e outros produtos típicos da região. À noite, o espaço é dedicado à venda de pratos e bebidas típicos da culinária do Vale do Jequitinhonha e apresentação de música ao vivo.        Em breve, o Mercado Velho, a “casa” dos tropeiros, passará a abrigar, em seu porão, o Memorial do Tropeiro e do Ferreiro em homenagem aos heróis anônimos que forjaram os objetos e ferramentas (ferreiros) necessários para o progresso e os transportaram (tropeiros), tornando possível a grandeza do velho Tijuco e da moderna Diamantina.

Meu pai foi tropeiro (tendo conduzido tropas de Itamarandiba para Diamantina) e, posteriormente, fazendeiro em cuja propriedade tinha uma fábrica de ferro. Na infância me encantava ver a passagem das tropas e assistir ao velho ferreiro transformar a pedra bruta em utensílios e ferramentas. Por tal motivo passei a colecionar, durante vários anos, objetos relacionados a estes ofícios. Toda a coleção, acrescida da doação de alguns amigos, foi doada à Prefeitura de Diamantina. O atual prefeito, Juscelino Brasiliano Roque, que como seu conterrâneo e homônimo (o imortal presidente Juscelino Kubistchek) tem raizes no passado do velho Tijuco, mas não se contenta com o presente e insiste em ser contemporâneo do futuro, idealizou e construiu o Memorial do Tropeiro e do Ferreiro para resgatar o passado, com o objetivo de possibilitar que as modernas gerações conheçam a saga e o exemplo destes pioneiros e continuem, no presente, forjando a bela Diamantina para as futuras gerações. Preservar nossa memória é garantir que não somos apenas um aglomerado e sim uma sociedade que reconhece seu passado, vive o presente e prepara o futuro.

Na verdade, com este Memorial, o Prefeito está resgatando não só o passado de nossa região, mas também seu próprio passado e de sua família. Quando criança e parte de uma grande prole de pais pobres, ele habitava ao lado do Mercado, onde convivia quase diariamente coletando esterco, conduzindo os animais para o pasto e ajudando os tropeiros em outros afazeres. Era recompensado na forma de mantimentos fornecidos pelos tropeiros para ajudar seus pais. Também era frequentador assíduo do Mercado seu avô Ernesto Roque dos Santos, político e seresteiro nos tempos áureos das tropas. Ficou gravado em sua memória os costumes, as músicas e os causos dos tropeiros, que pretende eternizar com o Memorial.

Na concretização do projeto do Memorial foi fundamental o engenho e a arte de Walter Cardoso França Junior (Juninho), Evandro Moreira e das professoras e alunos do Curso de Turismo da Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e do Mucuri. Eles lapidaram este diamante para Diamantina.                

A Ágora da Atenas grega nos legou os bens eternos da filosofia e da democracia. O Mercado Velho, a Ágora da Atenas do Norte, também Patrimônio da Humanidade como sua irmã grega, possibilitou o intercâmbio de mercadorias e de ideias que, associado aos diamantes, resultou no Velho Tijuco, atual Diamantina, a bela e gloriosa Atenas do Norte.                                             

Caros diamantinenses e visitantes, todos estão convidados para participar da inauguração do Memorial do Tropeiro e do Ferreiro no dia 6 de março próximo, data do aniversário de Diamantina. Venham e pisem com respeito nas velhas calçadas “destas ruas serpenteantes que descem loucas por diamantes e sobem ávidas por estrelas” (Padre Celso), pois estarão pisando na secular dama dos diamantes, forjada por ferreiros, tropeiros e garimpeiros, que

“A cada esquina traz, despetalados,
   Amores de Platão, de corte esquiva,
   Na doce espera de olhos enlevados
   Que a descortinem meiga, suavemente,
   Em desvirgíneo pleno, eterno, ardente…” 
   (Quincas)

Dr. Sebastião Gusmão

Professor Titular de Neurocirurgia da Faculdade de Medicina da UFMG

Tel: (38) 3531-4016

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