Minhas ruas e muitas lembranças


Desembargador Armando Freire

19.06.2018

Nesses dias que antecedem o início de mais uma Copa do Mundo de futebol, conquanto não haja mais aquela empolgação de outras Copas, em algumas cidades as ruas começam a ser enfeitadas e o verde-amarelo vai tomando conta. Timidamente, é verdade, porque o clima  não é dos melhores neste Brasil mergulhado em problemas. Mas não é disso que quero falar, é assunto, talvez, para outra oportunidade. Há muito venho relembrando a minha infância, retornando às décadas de 50 e 60, tempos corridos e vividos, inocentemente, numa Serro bem diferente da cidade de hoje. 

Falando em infância, é inevitável a lembrança da rua onde crescemos, onde nos socializamos, com os vizinhos, os mais próximos e os mais distantes, mas todos vivendo no mesmo pedaço, o mesmo espaço geo-urbano. A rua é a primeira cidade da gente, o nosso primeiro mundo, de onde partimos um dia qualquer para conquistar outras cidades, outros mundos. 

Li recentemente, e recomendo, “Os da minha rua”, um livro de  autoria de  Ondjaki , um jovem escritor angolano, coletânea de 22 pequenas histórias, homenageando a infância de cada um de nós. Vale a pena a leitura, fácil e prazerosa, para ao final constatarmos que a rua da nossa infância é igual as de Luanda, ou de Amsterdã, ou Itamarandiba, Caruaru, ou Xangai, New York , e tantas outras. É como dizer, cada um de nós tem a sua rua. 

Os primeiros anos da minha infância foram vividos na Rua de São José. Foi onde eu nasci, no início dos anos 50. A rua está lá, com o mesmo  traçado, começando na  antiga praça do Mercado (hoje rodoviária),  subindo até se encontrar com a rua do Gambá, na bifurcação com a rua que desce para o campo de futebol, ou para a chácara do sr. Geraldo Reis, como queiram. Era uma rua sem calçamento. Uma poeira só, mas muita lama na época de chuva. Não muitas casas, a maioria do lado direito , subindo no sentido do Gambá. Um pequeno armazém, logo no seu início, era do Seu Louro, salvo o engano, pai dos nossos amigos e companheiros de “pelada”, Luiz Marques, Milton e Ailton, que moravam na mesma rua, lá mais adiante e depois da nossa casa. Além dos meus irmãos, a minha convivência maior era com o Flavinho e a Ledinha, filhos do Seu Altivo e Dona Nazinha, que eram os nossos vizinhos de frente. Lembro-me de alguns outros que ali moravam, naquela época. Sr. Jeferson e Dona Elgita, com Paulo e Laerce; Seu Zeca de Odilon e seus filhos Bezinho e Zainha, dos tempos saudosos do Spartak; Marcos Saruê e Dona Maria; Seu Zuza e família; Seu Vicente “seleiro” e família. 

Não me lembro de muitas brincadeiras na rua, mas  quando  da instalação da rede de água na cidade, o assentamento da canalização,  brincávamos muito nas valas abertas, saltando de um lado para o outro, percorrendo de “cabo a rabo” aqueles buracos que, aos olhos,  pareciam imensos, profundos.

Vagamente, lembro-me de algumas idas aos fundos de uma “fábrica de arroz”, como falávamos, salvo o engano ao lado da casa do Seu Zuza, para escorregar e cair sobre o amontoado da casca de arroz que ía se juntando e formava verdadeiras montanhas. Mas, como falei, disso lembro-me pouco. 

Iluminação precária, lembro-me de suas noites escuras.  Tornava-se alegre e festiva, isso sim, quando das festas  de Santo Antônio, no mês de junho, com fogueira e fogos, canjica, doces e salgados, promovidas pelo meu pai e seus irmãos, sempre no terreiro da frente, na entrada da nossa casa. O meu avô Emílio era devoto de Santo Antônio.  Foram os primeiros anos da minha infância. No final de 1.956, fomos morar na Rua Nagib Bahamed, em frente a farmácia do Seu Laerte, uma casa que tinha sido da família do meu avô Bié, onde morou o dr. Antônio, médico, filho do reverenciado Dr. Tolentino.

Por ser uma rua central da cidade, não nos permitia ficar zanzando de lá pra cá. Era o ponto de maior movimento, inclusive de carros, ainda que poucos. Brincávamos muito na “pracinha”, ao lado da casa do Seu Laerte, e frequentávamos alguns quintais de vizinhos nossos, do tio Antônio Magalhães, do Seu Maíco Nunes,  da antiga pensão do Seu Alcindo Matos, do tio Antônio Freire, quintais esses que se estendiam até a Rua do Corte. Moramos ali até 1.961. 

Lembro-me de que 1.962, ano da Copa do Mundo do Chile, ja estávamos morando na rua Tiradentes (hoje rua Fernando Vasconcelos). Essa sim, é a rua das minhas mais caras e ternas lembranças. A rua da minha juventude. Tinha um componente importante e peculiar, que todas as ruas deveriam ter, ou seja, um ambiente familiar. Era naquela época a rua que fazia a conexão entre a parte alta e o centro comercial da cidade. Até hoje, quando passo pela “rua Tiradentes”, descendo ou subindo, vou mentalizando os cumprimentos, de um lado para o outro, vendo nas portas ou janelas, de acordo com o passar dos anos, Seu Epaminondas e Dona Cenira, Marcílio e Dona Lucinha, Seu Augusto Leão e Dona Geralda Madureira, José Gonçalves e dona Jandira, Dr. Wilson e Aresia, Seu Zé de Levi e Dona Iolanda, João Bosco e Enedina, Jaci e Marina, José Afonso e Geralda, Mauro Miranda e Dona Socorro, Seu José Maria Brandão,  Helvécio e Edir, tio Zezé e tia Noeme, tia Júlia e tio Aurélio, Seu Albertino, Dona Vidica Sales, Paulo de Ávila e dona Teca, Seu Lili e Dona Leonor, Seu Rômulo e Dona Carmosina, Seu Chico Nunes e Dona Pequitita, Zezé da Farmácia, Benjamin e Seu Luiz, Dona Morena, Seu “Concelos”, Dona Quequena, Naina e Dona Terezinha, Sandoval e Dona Lilia, Seu Newton e Dona Terezinha, Delcinho e Tidinha. Não tem como deixar de ver e cumprimentar, na janela da casa de Dona Leonor, a Maria Luiza.

Não tínhamos muitas brincadeiras de rua, é verdade. A Praça era o nosso desafogo devido a sua proximidade. Invariavelmente, sendo esse o componente especial dessa convivência, após o almoço, rapazes e moças iam se juntando no alpendre da nossa casa. Como dizíamos na época, no “murinho” da casa. Vale dizer, a nossa casa era onde mora hoje a minha prima Doris, viúva do saudoso Zulu. Ali ficávamos até por volta das 12:30 horas, comentários, fofocas, gozações, coisas despretensiosas, mas algumas vezes nem tanto. Quase sempre saía um cafezinho com biscoito de goma. Nesses momentos é que a rua tomava corpo e identidade, como todas as ruas deveriam ser.  

Passados tantos anos, hoje eu posso dizer que a rua Tiradentes, ou rua Fernando Vasconcelos, foi, das três, a que mais me marcou e ainda me traz muitas lembranças, mesmo que, lamentavelmente, não possa hoje se engalanar,  pintada de verde e amarelo. Como está nas palavras de Ondjaki, “A vida afinal acontece muito de repente (...) Nós, as crianças, vivíamos  num tempo fora do tempo, sem nunca sabermos dos calendários de verdade (...) A vida às vezes é como um jogo  brincado na rua: estamos no último minuto de uma brincadeira bem quente e não sabemos que a qualquer momento pode chegar um mais velho e avisar que a brincadeira já acabou e está na hora de jantar” (Os da minha rua; 2.007, Bertrand Livreiros).  

Rua São José, 1956
Rua São José, 1956

Voltar
Utilizamos cookies para melhorar a sua experiência. Ao navegar no site, você concorda com a nossa política de privacidade e uso de cookies.