O OVO DA SERPENTE
14.04.2021
Brutus, na tragédia Julio César, de Shakespeare, ao ver a frágil República Romana ameaçada por César, exorta: “Consideremo-lo ovo de serpente que, chocado, por sua natureza, se tornará nocivo. Assim, matemo-lo, enquanto está na casca”. Em 1977, Ingmar Bergman usou a mesma metáfora em seu magnífico filme O Ovo da Serpente (ambientado na Berlim de 1923, durante a República de Weimar) para realizar uma profunda reflexão sobre as origens do nazismo.
Como demonstram a peça teatral de Shakespeare e o filme de Bergman, a história está repleta de períodos em que o ódio obscurece a razão, levando um povo a compactuar com regimes totalitários. A chocadeira apropriada do ovo da serpente totalitária é a depressão econômica, desemprego, insegurança, instabilidade política, corrupção e crise moral. Tudo isso leva ao medo e à esperança, formando a matéria-prima dos líderes carismáticos, messiânicos. Desta chocadeira eclodiu, na primeira metade do século XX, a serpente do totalitarismo (fascismo, nazismo e comunismo) que envenenou o mundo, causando a morte de milhares durante a Segunda Guerra Mundial.
Hitler e Stalin (pertencentes a extremos políticos opostos, aliados de conveniência e depois inimigos em guerra), em poucos anos, transformaram a destruída Alemanha e a atrasada Rússia em superpotências. Se tivessem parado por aí, seriam considerados grandes estadistas. Porém, eles traziam consigo o ovo da serpente, o veneno da loucura. Este veneno está na mente dos líderes totalitários.
Albert Camus, escritor e filósofo francês, combateu os totalitarismos nazista e stalinista. E quando um jornalista perguntou se ele era de direita ou de esquerda, respondeu: “quando a direita está certa sou de direita, quando a esquerda está certa sou de esquerda”. Entre os extremos, à direita ou à esquerda, a história mostra que a verdade está na democracia, na liberdade. Não existe paraíso em ditaduras de direita ou de esquerda. A democracia não garante o paraíso na terra, mas impede que o inferno se instale. Ela é o único sistema politico que, apesar de suas falhas estruturais, torna possível a liberdade dentro de nossa limitada condição humana. Mas essa liberdade é conquistada, exige conhecimento. Eva foi sábia quando trocou o paraíso pelo conhecimento, pela liberdade, ao optar por comer o fruto da árvore do conhecimento. É melhor ser livre, dono do próprio destino, do que ser servo em um paraíso. A primeira mulher nos gerou livres e ávidos de conhecimento, o que possibilitou nossa humanização e a cultura.
Como admoesta Boétie, tanto o conhecimento e a liberdade quanto a servidão e a ignorância fazem parte de nossa natureza. Nossa ignorância, muitas vezes, não nos permite reconhecer nossos preconceitos e intolerâncias, o réptil dentro de nós que está tentando romper a casca do ovo. Afinal, sem o conhecimento, a cultura, o homem é apenas um pobre animal, mamífero descendente de réptil.
Hoje ouvimos vozes arrogantes afirmarem que o regime militar que durou duas décadas foi um momento glorioso de nossa história. Esse período de falta de liberdade gerou um enorme vazio cultural que destruiu o pensamento criador e politico de uma geração, cujas desastrosas consequências persistem até hoje. Querer reviver o regime militar seria transformar o passado em coveiro do presente, ignorando a história.
A principal arma do totalitarismo é a propaganda, que elege o inimigo responsável pela desgraça atual e oferece um paraíso imaginário. E, quando ao desastre sócio-econômico se associa o analfabetismo funcional, torna-se fácil aceitar paraísos terrestres e extraterrestres. Em nossa Era da Informação, a difusão infinita de conteúdos manipulados, associada à falta de reflexão, leva à disseminação do obscurantismo, colocando em risco a democracia. A dinâmica dos algoritmos das redes sociais coloca em contato apenas aqueles se afinam entre si, formando seitas de servos voluntários de um só pensamento, de uma só verdade, ou seja, constituindo-se em grupos de ignorância. Como afirma Umberto Eco, as redes sociais deram direito à palavra a uma legião de imbecis.
No Brasil atual, há ameaças de um regime autoritário, mas faltam as condições históricas que propiciaram a ditadura instalada em 1964. Na época havia a guerra fria, o medo do comunismo, e uma corrente militar anti-Jango devido às medidas presidenciais desastrosas. Hoje, a sociedade civil, o parlamento, o judiciário e os militares estão menos favoráveis à instalação de um regime autoritário. Mas o preço da liberdade é a eterna vigilância, pois a democracia pode sofrer perdas progressivas até chegar ao limite do totalitarismo, e mesmo ultrapassar esse limite, como demostra a história contemporânea. Como adverte Brecht, isso é possível devido ao silêncio cúmplice dos bons permitir o ecoar do grito dos maus. O seguro é opor-se ao envenenamento da democracia, manter a serpente dentro do ovo.
Entre nós, o mal está em gestação. Como afirma Vergerus, personagem do filme O Ovo da Serpente: “Qualquer um poderá ver o que nos espera no futuro. É como o ovo da serpente. Através das finas membranas, pode-se claramente discernir o réptil já perfeitamente formado”.
O ovo da serpente está sendo incubado pelo analfabetismo funcional, pela intolerância e pelo fanatismo, para gerar a serpente do totalitarismo com seu veneno mortal para a democracia. Da ignorância da história e da política só sai desgraça. Do ovo de serpente só sai serpente. Eliminemos o ovo enquanto ainda é tempo.
Dr. Sebastião Gusmão
Professor Titular de Neurocirurgia da Faculdade de Medicina da UFMG
Tel: (38) 3531-4016