O OVO DA SERPENTE


13.09.2021

Brutus, na tragédia Julio César, de Shakespeare, ao ver a frágil República Romana ameaçada por César, exorta: “Consideremo-lo ovo de serpente que, chocado, por sua natureza, se tornará nocivo. Assim, matemo-lo, enquanto está na casca”. Em 1977, Ingmar Bergman usou a mesma metáfora em seu magnífico filme O Ovo da Serpente (ambientado na Berlim de 1923, durante a República de Weimar) para realizar uma profunda reflexão sobre as origens do nazismo.

Como demonstram a peça teatral de Shakespeare e o filme de Bergman, a história está repleta de períodos em que o ódio obscurece a razão, levando um povo a compactuar com regimes totalitários. A chocadeira apropriada do ovo da serpente totalitária é a depressão econômica, desemprego, insegurança, instabilidade política, corrupção e crise moral. Tudo isso leva ao medo e à esperança, formando a matéria- prima dos líderes carismáticos, messiânicos. Desta chocadeira eclodiu, na primeira metade do século 20, a serpente do totalitarismo (fascismo, nazismo e comunismo) que envenenou o mundo, causando a morte de milhares durante a Segunda Guerra Mundial.

Entre os extremos, à direita ou à esquerda, a história mostra que a verdade está na democracia, na liberdade. Não existe paraíso em ditaduras de direita ou de esquerda. A democracia não garante o paraíso na terra, mas impede que o inferno se instale. Ela é o único sistema politico que, apesar de suas falhas estruturais, torna possível a liberdade dentro de nossa limitada condição humana. Mas essa liberdade é conquistada, exige conhecimento.

Como admoesta Boétie, tanto o conhecimento e a liberdade quanto a ignorância e a servidão fazem parte de nossa natureza. Nossa ignorância, muitas vezes, não nos permite reconhecer nossos preconceitos e intolerâncias, o réptil dentro de nós que está tentando romper a casca do ovo. Afinal, sem o conhecimento, a cultura, o homem é apenas um pobre animal, mamífero descendente de réptil.

A principal arma do totalitarismo é a propaganda, que elege o inimigo responsável pela desgraça atual e oferece um paraíso imaginário. E, quando ao desastre sócio- econômico se associa o analfabetismo funcional, torna-se fácil aceitar paraísos terrestres. Em nossa Era da Informação, a difusão infinita de conteúdos manipulados, associada à falta de reflexão, leva à disseminação do obscurantismo, colocando em risco a democracia. A dinâmica dos algoritmos das redes sociais coloca em contato apenas aqueles se afinam entre si, formando seitas de servos voluntários de um só pensamento, de uma só verdade, ou seja, constituindo-se em grupos de ignorância. Como afirma Umberto Eco, as redes sociais deram direito à palavra a uma legião de imbecis.

No Brasil atual, a sociedade está menos favorável à instalação de um regime autoritário. Mas o preço da liberdade é a eterna vigilância, pois a democracia pode sofrer perdas progressivas até chegar ao limite do totalitarismo, e mesmo ultrapassar este limite, como demostra a história contemporânea. Como adverte Brecht, isso é possível devido o silêncio cúmplice dos bons permitir o ecoar do grito dos maus. O seguro é opor-se ao envenenamento da democracia, manter a serpente dentro do ovo.

Entre nós, o mal está em gestação. Como afirma Vergerus, personagem do filme O Ovo da Serpente: “Qualquer um poderá ver o que nos espera no futuro. É como o ovo da serpente. Através das finas membranas, pode-se claramente discernir o réptil já perfeitamente formado”. O ovo da serpente está sendo incubado pelo analfabetismo funcional, pela intolerância e pelo fanatismo para gerar a serpente do totalitarismo com seu veneno mortal para a democracia. Da ignorância da história e da política só sai desgraça. Do ovo de serpente só sai serpente. Eliminemos o ovo enquanto ainda é tempo.

Dr. Sebastião Gusmão

Professor Titular de Neurocirurgia da Faculdade de Medicina da UFMG

Tel: (38) 3531-4016

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